O pregador da Casa Pontifícia escolheu como tema das meditações para a Quaresma deste ano: “Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo”. As meditações são feitas sempre às sextas-feiras e vão até 23 de março.

 Cidade do Vaticano

Na manhã de sexta-feira, 2 de março, o padre Raniero Cantalamessa O.F.M. propôs a II Pregação da Quaresma ao Papa Francisco e à Cúria Romana, reunidos na Capela Redemptoris Mater, no Vaticano, com o título “Que vossa caridade não seja fingida”. Publicamos aqui a terceira parte.

>> II  Parte

  1. A caridade ad intra

O segundo grande campo de exercício da caridade é, se dizia, as relações dentro da comunidade. Na prática: como gerenciar os conflitos de opiniões que emergem entre seus vários componentes. Sobre este tema, o Apóstolo dedica todo o capítulo 14 da Carta.

O conflito que ocorria então na comunidade romana era entre aqueles que o Apóstolo chama de “os fracos” e aqueles que chama de “os fortes”, entre os quais ele se coloca (“Nós, que somos os fortes …”) (Rm 15,1). Os primeiros eram aqueles que se sentiam moralmente obrigados a observar determinadas prescrições herdadas da lei ou de crenças pagãs anteriores, como não comer carne (com suspeita de que tinha sido sacrificada aos ídolos) e o distinguir os dias em felizes e infelizes. Os segundos, os fortes, eram aqueles que, em nome da liberdade cristã, tinham superado estes tabus e não distinguiam comida de comida ou dia de dia. A conclusão do discurso (cf. Rm 15, 7-12) deixa claro que, no fundo, há o usual problema da relação entre os crentes provenientes do judaísmo e os crentes provenientes dos gentios.

As exigências da caridade que o Apóstolo inculca neste caso nos interessam no mais alto grau porque são as mesmas que se impõem em cada tipo de conflito intereclesial, inclusive aqueles que vivemos hoje, tanto a nível de Igreja universal quanto na comunidade em que cada um mora.

Os critérios que o Apóstolo sugere são três. O primeiro é seguir a própria consciência. Se alguém está convencido de cometer pecado fazendo certa coisa, não deve fazê-la. “Tudo isso, de fato, que não vem da consciência – escreve o Apóstolo – é pecado” (Rm 14, 23). O segundo critério é respeitar a consciência dos outros e abster-se de julgar o irmão:

 “Por que julgas, então, o teu irmão? Ou por que desprezas o teu irmão?

[…]”Deixemos, pois, de nos julgar uns aos outros; antes, cuidai em não pôr um tropeço diante do vosso irmão ou dar-lhe ocasião de queda.” (Rm 14, 10.13).

O terceiro critério diz respeito principalmente aos “fortes” e é de evitar o escândalo:

“Sei, estou convencido no Senhor Jesus de que nenhuma coisa é impura em si mesma; somente o é para quem a considera impura. Ora, se por uma questão de comida entristeces o teu irmão, já não vives segundo a caridade. Pela comida não causes a perdição daquele por quem Cristo morreu! […] Portanto, apliquemo-nos ao que contribui para a paz e para a mútua edificação.” (Rm 14, 14-19).

Todos esses critérios são, no entanto, particulares e relativos, em comparação com outro que, pelo contrário, é universal e absoluto, o do senhorio de Cristo. Ouçamos como o Apóstolo o formula:

“Quem distingue o dia, age assim pelo Senhor. Quem come de tudo, o faz pelo Senhor, porque dá graças a Deus. E quem não come, abstém-se pelo Senhor, e igualmente dá graças a Deus. Nenhum de nós vive para si, e ninguém morre para si. Se vivemos, vivemos para o Senhor; se morremos, morremos para o Senhor. Quer vivamos quer morramos, pertencemos ao Senhor. Para isso é que morreu Cristo e retomou a vida, para ser o Senhor tanto dos mortos como dos vivos.” (Rm 14, 6-9).

Cada um é convidado a examinar-se a si mesmo para ver o que há no fundo da própria escolha: se há o senhorio de Cristo, a sua glória, o seu interesse, ou não, pelo contrário, mais ou menos dissimuladamente, a própria afirmação, o próprio “eu” e o próprio poder; se a sua escolha é de natureza verdadeiramente espiritual e evangélica, ou se não depende pelo contrário da própria inclinação psicológica, ou, pior, da própria opção política. Isso vale em um e no outro sentido, ou seja, tanto para os assim chamados fortes quanto para os assim chamados fracos; tanto, diremos nós hoje, para aqueles que estão do lado da liberdade e da novidade do Espírito, quanto para aqueles que estão do lado da continuidade e da tradição.

Há uma coisa que deve ser levada em consideração para não ver, na atitude de Paulo sobre esse assunto, uma certa inconsistência em relação ao seu ensino anterior. Na Carta aos Gálatas, ele parece muito menos disposto ao compromisso e negociações, por vezes, encolerizado. (Se ele tivesse que se submeter ao processo de canonização hoje, Paulo, dificilmente, se tornaria santo: teria sido difícil demonstrar a “heroicidade” de sua paciência! Ele às vezes “explode”, mas podia dizer: “Não sou mais eu quem vivo, Cristo vive em mim “(Gal 2,20), e essa, nós vimos, é a essência da santidade cristã).

Na Carta aos Gálatas, Paulo censura Pedro pelo que ele parece recomendar a todos, ou seja, abster-se de mostrar sua convicção para não escandalizar os simples. Na verdade, em Antioquia, Pedro estava convencido de que comer com os gentios não contaminasse um judeu (já havia estado na casa de Cornélio!), mas se abstém de fazê-lo para não causar escândalo aos judeus presentes (cf. Gal 2, 11-14). O próprio Paulo, em outras circunstâncias, agirá da mesma maneira (veja At 16, 3; 1 Cor 8, 13).

A explicação não está naturalmente apenas no temperamento de Paulo. Em primeiro lugar, o que estava em jogo em Antioquia era muito mais claramente ligado à fé e à liberdade do Evangelho do que parecia ser em Roma. Em segundo lugar – e este é o principal motivo – para os Gálatas Paulo fala como fundador da Igreja, com a autoridade e a responsabilidade do pastor; para os Romanos, fala como mestre e irmão na fé: para contribuir, diz ele, à edificação comum (ver Rm 1, 11-12). Há uma diferença entre o papel do pastor ao qual é devida a obediência e o do mestre ao qual somente se deve respeito e escuta. Isso nos faz entender que aos critérios de discernimento mencionados deve-se acrescentar outro, do qual não se demorará para se tomar consciência com o desenvolvimento da comunidade cristã, ou seja, o critério da autoridade e da obediência.

Enquanto isso, ouçamos como dirigida à Igreja de hoje a exortação conclusiva que o Apóstolo dirigia à comunidade de então: “Por isso, acolhei-vos uns aos outros, como Cristo nos acolheu para a glória de Deus.” (Rm 15,7).

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[1] Cf. Le cause dei santi. Sussidio per lo Studium, a cura della Congregazione delle Cause dei Santi, Libreria Editrice Vaticana, 3a ed. 2014, pp. 13-81.

[2] Archimandrita Sofronio, Silvano del Monte Athos. La vita, la dottrina, gli scritti,  Torino 1978, pp. 255 s.

Tradução: Thácio Siqueira.