O pregador da Casa Pontifícia escolheu como tema das meditações para a Quaresma deste ano: “Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo”. As meditações são feitas sempre às sextas-feiras e vão até 23 de março.

 Cidade do Vaticano

Na manhã de sexta-feira, 2 de março, o padre Raniero Cantalamessa O.F.M. propôs a II Pregação da Quaresma ao Papa Francisco e à Cúria Romana, reunidos na Capela Redemptoris Mater, no Vaticano, com o título “Que vossa caridade não seja fingida”. Apresentamos aqui a segunda parte.

>> I – Parte

  1. Caridade com os de fora

Depois de nos ter explicado o que é a verdadeira caridade cristã, o Apóstolo, na sequência da sua parênese, mostra como esse “amor sincero” deve ser traduzido em ação nas situações de vida da comunidade. O Apóstolo destaca duas situações: a primeira diz respeito às relações ad extra da comunidade, ou seja, com os de fora; a segunda, as relações ad intra, entre os membros da própria comunidade. Vamos ouvir algumas das suas recomendações referentes à primeira relação, aquela com o mundo exterior:

“Abençoai os que vos perseguem; abençoai-os, e não os praguejeis […] Aplicai-vos a fazer o bem diante de todos os homens. Se for possível, quanto depender de vós, vivei em paz com todos os homens. Não vos vingueis uns aos outros, caríssimos, mas deixai agir a ira de Deus […] Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber […]Não te deixes vencer pelo mal, mas triunfa do mal com o bem.” (Rm 12, 17-21).

Nunca antes, como neste ponto, a moral do evangelho parece original e diferente de qualquer outro modelo ético, e nunca a parênese apostólica parece mais fiel e em continuidade com a do Evangelho. O que torna tudo isso particularmente atual para nós é a situação e o contexto em que esta exortação é dirigida aos que creem. A comunidade cristã de Roma é um corpo estranho em um organismo que – na medida em que toma consciência de sua presença – rejeita-o. É uma pequena ilha no mar hostil da sociedade pagã. Em circunstâncias como esta, sabemos quão forte é a tentação de se fechar, desenvolvendo o sentimento elitista e sombrio de uma minoria de salvos em um mundo de perdidos. Com este sentimento vivia, naquele mesmo momento histórico, a comunidade essênia de Qumran.

A situação da comunidade de Roma descrita por Paulo representa, em miniatura, a situação atual de toda a Igreja. Não falo das perseguições e do martírio ao qual nossos irmãos de fé são expostos em muitas partes do mundo; falo da hostilidade, da recusa e muitas vezes do profundo desprezo com que não só os cristãos, mas todos os crentes em Deus são vistos em vastos estratos da sociedade, geralmente os mais influentes e que determinam o sentimento comum. Eles são considerados precisamente como corpos estranhos em uma sociedade evoluída e emancipada.

A exortação de Paulo não nos permite perder um único momento em recriminações acrimoniosas e em polêmicas estéreis. Naturalmente, não se exclui o fato de dar razão da esperança que está em nós “com gentileza e respeito”, como recomendava São Pedro (1 Pd 3, 15-16). É uma questão de entender qual atitude do coração deve ser cultivada com relação a uma humanidade que, como um todo, rejeita Cristo e vive nas trevas e não na luz (cf. Jo 3,19). Tal atitude é aquela de uma profunda compaixão e tristeza espiritual, de amá-los e sofrer por eles; carregar seus fardos perante Deus, como Jesus carregou nossos fardos perante o Pai, e não deixar de parar de chorar e orar pelo mundo. Este é um dos mais belos traços da santidade de alguns monges ortodoxos. Penso em São Silvano do Monte Athos. Ele dizia:

“Há homens que desejam a seus inimigos e aos inimigos da Igreja a ruína e os tormentos do fogo da condenação. Eles pensam assim porque não foram instruídos pelo Espírito Santo no amor de Deus. Aquele que, pelo contrário, realmente aprendeu derrama lágrimas por todo o mundo. Você diz: ‘É mau e deve queimar no fogo do inferno’. Mas, eu lhe pergunto: ‘Se Deus desse a você um lindo lugar no paraíso e de lá você visse queimar nas chamas aquele que você desejou tal fim, possivelmente, nem então, você sentiria compaixão por ele, quem quer que ele tivesse sido, mesmo se inimigo da Igreja[2]”

Na época deste santo monge, os inimigos eram principalmente os bolcheviques que perseguiam a Igreja da sua amada pátria, a Rússia. Hoje, a frente alargou-se e não existe “cortina de ferro” a esse respeito. Na medida em que um cristão descobre a infinita beleza, o amor e a humildade de Cristo, não pode deixar de sentir uma profunda compaixão e sofrimento por aqueles que voluntariamente se privam do maior bem da vida. O amor torna-se mais forte nele do que qualquer ressentimento. Em uma situação semelhante, Paulo diz que está disposto a ser ele mesmo “anátema, separado de Cristo”, se isso pudesse servir para ser aceito por aqueles do seu povo que permaneceram fora (Rm 9, 3).

>> continua.

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