O pregador da Casa Pontifícia escolheu como tema das meditações para a Quaresma deste ano: “Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo”. As meditações são feitas sempre às sextas-feiras e vão até 23 de março.
Cidade do Vaticano
Na manhã desta sexta-feira, 2 de março, o padre Raniero Cantalamessa O.F.M. propôs a II Pregação da Quaresma ao Papa Francisco e à Cúria Romana, reunidos na Capela Redemptoris Mater, no Vaticano, com o título “Que vossa caridade não seja fingida”.
“QUE VOSSA CARIDADE NÃO SEJA FINGIDA”
O amor cristão
- Indo às fontes da santidade cristã
Juntamente com a chamada universal à santidade, o Concílio Vaticano II também deu indicações precisas sobre o que se entende por santidade, no que consiste. Na Lumen gentium se lê:
” Jesus, mestre e modelo divino de toda a perfeição, pregou a santidade de vida, de que Ele é autor e consumador, a todos e a cada um dos seus discípulos, de qualquer condição: «sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito» (Mt. 5,48) (121). A todos enviou o Espírito Santo, que os move interiormente a amarem a Deus com todo o coração, com toda a alma, com todo o espírito e com todas as forças (cfr. Mc. 12,30) e a amarem-se uns aos outros como Cristo os amou (cfr. Jo. 13,34; 15,12). Os seguidores de Cristo, chamados por Deus e justificados no Senhor Jesus, não por merecimento próprio mas pela vontade e graça de Deus, são feitos, pelo Batismo da fé, verdadeiramente filhos e participantes da natureza divina e, por conseguinte, realmente santos. É necessário, portanto, que, com o auxílio divino, conservem e aperfeiçoem, vivendo-a, esta santidade que receberam.”(LG 40).
Tudo isso está resumido na fórmula: “a santidade é a união perfeita com Cristo” (LG, 50). Esta visão reflete a preocupação geral do Concílio de voltar às fontes bíblicas e patrísticas, superando, também neste campo, a postura escolástica dominante durante séculos. Agora é uma questão de tomar consciência dessa renovada visão de santidade e fazê-la passar na prática da Igreja, isto é, na pregação, na catequese, na formação espiritual dos candidatos ao sacerdócio e à vida religiosa e – por que não? – também na visão teológica que inspira a prática da Congregação dos Santos[1].
Uma das principais diferenças entre a visão bíblica da santidade e a da escolástica reside no fato de que as virtudes não se fundamentam tanto na “reta razão” (a recta ratio aristotélica), mas no Querigma; ser santo não significa seguir a razão (muitas vezes, é o contrário!), mas seguir a Cristo. A santidade cristã é essencialmente cristológica: consiste na imitação de Cristo e, no seu cume – como diz o Concílio – na “perfeita união com Cristo”.
A síntese bíblica mais completa e mais compacta de uma santidade fundada no Querigma é aquela descrita por São Paulo na parte parenética da Carta aos Romanos (capítulos 12-15). No início, o Apóstolo dá uma visão resumida do caminho de santificação do crente, do seu conteúdo essencial e do seu propósito:
“Eu vos exorto, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, a oferecerdes vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus: é este o vosso culto espiritual. Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso espírito, para que possais discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe agrada e o que é perfeito” (Rm 12,1-2).
Na última pregação, nós meditamos estes versículos. Nas próximas meditações, partindo do que se segue no texto paulino e completando-o com o que o Apóstolo diz em outro lugar sobre o mesmo argumento, tentaremos destacar os traços salientes da santidade, aqueles que hoje são chamados de “virtudes cristãs” e que o Novo Testamento define como os “frutos do Espírito”, as “obras da luz”, ou também “os sentimentos que estavam em Cristo Jesus” (Fl 2, 5).
A partir do capítulo 12 da Carta aos Romanos, todas as principais virtudes cristãs, ou frutos do Espírito, estão listadas: o serviço, a caridade, a humildade, a obediência, a pureza. Não como virtudes a serem cultivadas por si mesmo, mas como necessárias consequências da obra de Cristo e do batismo. A seção começa com uma conjunção que por si só vale um tratado: “Vos exorto, portanto…”. Aquele “portanto” significa que tudo o que o Apóstolo dirá desse momento em diante é a consequência do que escreveu nos capítulos precedentes sobre a fé em Cristo e sobre a obra do Espírito. Refletiremos sobre quatro destas virtudes: caridade, humildade, obediência e pureza, começando com a primeira.
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- Um amor sincero
O Ágape, ou caridade cristã, não é uma das virtudes, nem sequer a primeira; é a forma de todas as virtudes, da qual “dependem todas as leis e os profetas” (Mt 22, 40; Rom 13,10). Entre os frutos do Espírito que o Apóstolo lista em Gálatas 5, 22, em primeiro lugar, encontramos o amor: “O fruto do Espírito é amor, alegria, paz…”. E é com isso que, de forma coerente, também começa a parênese sobre as virtudes na Carta aos Romanos. Todo o capítulo doze é uma sucessão de exortações à caridade:
“Que vossa caridade não seja fingida […]; amai-vos mutuamente com afeição terna e fraternal. Adiantai-vos em honrar uns aos outros…” (Rm 12, 9 ss).
Para entender a alma que unifica todas essas recomendações, a ideia básica, ou melhor, o “sentimento” que Paulo tem da caridade deve começar daquela palavra inicial: “Que vossa caridade não seja fingida!” Esta não é uma das muitas exortações, mas a matriz a partir da qual derivam todas as demais. Contém o segredo da caridade.
O termo original usado por São Paulo e que é traduzido como “sem fingimentos”, é anhypòkritos, isto é, sem hipocrisia. Esta palavra é uma espécie de lâmpada-piloto; na verdade, é um termo raro que encontramos empregado, no Novo Testamento, quase que exclusivamente para definir o amor cristão. A expressão “amor sincero” (anhypòkritos) retorna novamente em 2 Cor 6, 6 e 1 Pd 1, 22. Este último texto permite compreender, com toda a certeza, o significado do termo em questão, porque o explica com uma perífrase; o amor sincero – diz – consiste em amar-se intensamente “com coração verdadeiro”.
São Paulo, então, com aquela simples afirmação: “a caridade seja sem fingimento!”, leva o discurso à própria raiz da caridade, ao coração. O que se requer do amor é que seja verdadeiro, autêntico, não fingido. Também nisso o Apóstolo é o eco fiel do pensamento de Jesus; ele, de fato, havia indicado, repetidamente e com força, o coração, como o “lugar” no qual se decide o valor do que o homem faz” (Mt 15, 19).
Podemos falar de uma intuição paulina em relação à caridade; consiste em revelar, por trás do universo visível e externo da caridade, feito de obras e de palavras, outro universo todo interior, que é, em relação ao primeiro, o que é a alma para o corpo. Reencontramos essa intuição no outro grande texto sobre a caridade, que é 1 Cor 13. O que São Paulo diz ali, observando bem, se refere inteiramente a esta caridade interior, às disposições e sentimentos de caridade: a caridade é paciente, é benigna, não é invejosa, não se irrita, tudo desculpa, tudo crê, tudo espera… Nada que diga respeito, por si e diretamente, ao fazer o bem, ou as obras de caridade, mas tudo é reconduzido à raiz do querer bem. A benevolência vem antes da beneficência.
É o próprio Apóstolo que faz explícita a diferença entre as duas esferas da caridade, dizendo que o maior ato de caridade externa (distribuir aos pobres todas as próprias coisas) não beneficiaria em nada, sem a caridade interior (cf. 1 Cor 13,3). Seria o oposto da caridade “sincera”. A caridade hipócrita, de fato, é precisamente aquela que faz o bem, sem querer bem, que mostra externamente uma coisa que não encontra uma correspondência no coração. Neste caso, há uma aparência de caridade, que pode, no máximo, esconder egoísmo, a busca de si mesmo, instrumentalização do irmão, ou também simplesmente o remorso de consciência.
Seria um erro fatal contrapor a caridade do coração à caridade dos fatos, ou se refugiar na caridade interior, para encontrar nela uma espécie de álibi perante a falta de caridade factual. Sabemos com que vigor a palavra de Jesus (Mt 25), de São Tiago (2, 16 s) e de São João (1 Jo 3, 18) encorajam à caridade dos fatos. Sabemos a importância que São Paulo mesmo deu às coletas a favor dos pobres de Jerusalém.
Além disso, dizer que, sem a caridade, “não ganho nada” inclusive dando tudo aos pobres, não significa dizer que tal atitude não sirva para ninguém e que seja inútil; significa, pelo contrário, dizer que não serve “para mim”, enquanto que pode servir para o pobre que a recebe. Não se trata, portanto, de atenuar a importância das obras de caridade, mas de garantir-lhes um fundamento seguro contra o egoísmo e os seus infinitos truques. São Paulo quer que os cristãos estejam “enraizados e fundamentados na caridade” (Ef 3, 17), ou seja, que a caridade seja a raiz e o fundamento de tudo.
Quando amamos “de coração”, é o próprio amor de Deus “derramado em nossos corações pelo Espírito Santo” (Rm 5, 5) que passa por nós. A ação humana é verdadeiramente deificada. Tornar-se “participantes da natureza divina” (2 Pd 1, 4) significa, de fato, tornar-se participantes da ação divina, da ação divina de amar, dado que Deus é amor!
Nós amamos os homens não só porque Deus os ama, ou porque Ele quer que os amemos, mas porque, ao nos dar o seu Espírito, Ele colocou em nossos corações seu próprio amor por eles. Isso explica por que o apóstolo afirma imediatamente depois: “A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, a não ser o amor recíproco; porque aquele que ama o seu próximo cumpriu toda a lei.” (Rm 13, 8).
Por que, nos perguntamos, uma “dívida”? Porque recebemos uma medida infinita de amor para ser distribuído, a seu tempo, entre os irmãos (cf Lc 12, 42, Mt 24, 45 s.). Se não o fizermos, retiramos do irmão algo que lhe é devido. O irmão que aparece à sua porta, talvez peça algo que você não lhe pode dar; mas se você não pode dar-lhe o que ele pede, preste atenção para não manda-lo embora sem aquilo que lhe é devido, ou seja, o amor.
Continua >>
Imagem: Arquivo Secretariado
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